Ando me perguntando se a única maneira de apreciarmos a vida é nos confrontar com a certeza absoluta da morte.
Uma vez, alguém próximo a mim experimentou uma quase morte e disse que “algo na vida muda com certeza". O Carpe Diem é verdadeiro, isso de prestar atenção nas pequenas coisas. Mas se você vive o carpe diem todos os dias, talvez não reste muitos carpe diems para você.”
A pulsão de viver motivada pela iminência do fim me parece uma imensa bobagem. A nossa morte não deveria ser um motivo para buscarmos a vida e suas graças, mas sim um lembrete do quão preciosa é a vida, em sua pequeneza e irrelevância. Tudo que fazemos, tudo que construímos, é póstumo de alguma forma, exceto nossa vida, o que sentimos e o que pensamos sentir.
Com isso na cabeça, assisti Carol e o Fim do Mundo, animação original da Netflix produzida em 2023, quando o vocabulário apocalíptico da pandemia ainda habitava nossos corretores de texto.
O fim do tédio
Quando um planetoide fosforescente e etéreo aparece sem grandes explicações sobre o planeta Terra, anunciando sua destruição incontestável, as pessoas do mundo partem em buscas insanas por um propósito em suas. Antes que o mundo acabe, tudo deve valer a pena. Do contrário, qual a utilidade?
O problema de Carol, a protagonista super ultra mega melancólica, é que seu mundo mundo é completamente aniquilado pela destruição de sua rotina. Sem agendas, sem planos e sem o menor interesse em gastar seus preciosos últimos meses encontrando algum propósito, ou experimentando todas as sensações possíveis, a protagonista apática perambula meio sem razão por uma cidade arruinada e um mundo um pouco vazio.
O sentimento é parecido com o que sentimos durante a pandemia, quando o Carlos, o amigo distante aparecia de vez em quando e dizia que a vida dele estava ótima, que inventara pelo menos dezesseis hobbies (sendo bom em todos eles) e que tomou o tempo isolado para crescer. Espero que você esteja sofrendo, Carlos. Era o fim do mundo, cara…
Longe de ser alguém cheia de pulsão ou desejos, Carol não encontra pares no mundo pré-arruinado, mas ao mesmo tempo cheio de atividades como trilhas, safaris, paraquedas, viagens de balão, tirolesas e outras atividades turísticas que parecem ser a única vida possível no fim dos tempos.
Mais pra frente, num episódio onde acompanhamos os pais de Carol em um cruzeiro, piratas invadem o navio numa paródia de Capitão Philips, não pelo dinheiro do resgate, mas para roubarem um pouco do sossego dos turistas. Viver um pouco antes de tudo acabar.
Pra enfrentar o delírio apocalíptico irracional, o achatamento de tudo, a resposta inicial é a busca irrestrita pelas emoções e, claro, pelo compartilhamento das experiências. Todo mundo se torna meio coach.
Os pais de Carol abraçam o nudismo e engajam um poliamor com seu enfermeiro, que descobre naquele casal uma pulsão romântica tão poderosa que transforma sua vida completamente. Sua irmã é alguém que sempre teve sucesso em tudo, e agora lança-se nas mais diversas aventuras conhecendo todo o mundo. E todo mundo ao redor também parece libertar-se das amarras do tédio.
E nisso temos a Carol. Que é apenas a Carol. Como ela, algumas outras pessoas igualmente desajustadas não se encontram nesse fim dos tempos e, como não, afundam-se em melancolia…
Mas no meio de uma cidade arrasada e esvaziada, onde não existe mais uma experiência urbana de fato, um prédio lustroso e implacável ergue-se pleno. Lá dentro, num canto secreto do mundo, é operado um escritório de contabilidade, com baias, computadores, impressoras matriciais, cafézinhos corporativos e carpetes sem graça. Um ambiente tão estimulante quanto sua protagonista, que só encontra alívio em sua vida, quando retorna ao trabalho.
Ela troca um tédio, aquele compulsório que o planeta Kepler jogou em sua vida, por outro: um que ela mesma abraça. O tédio de levantar todos os dias às seis da manhã, encher a boca com um sanduíche sem graça, atravessar a cidade em um metrô vazio e defeituoso e partir na jornada de oito horas de trabalho diário. Pouco importa qual seja o trabalho, não há diferença no que se produz a partir daquele escritório. Não é pela produção, nunca foi. Para Carol, é sobre a Distração (literalmente o nome do escritório).
O corporativismo é tão afastado da realidade, que mantém suas operações mesmo no fim do mundo, operando como um oásis anestésico e maravilhoso. Mas ao mesmo tempo, é apenas um festim. Carol não está nem aí para o capitalismo e não o desafia como realidade. Ela o concebe como um contexto, criando um escritório no fim do mundo mais para ilustrar o absurdo daquela vida de um jeito bastante claro, do que para fazer da militância o seu tema. No grande episódio final todas aquelas cortinas formais de banalidade são destroçadas pelo aparecimento do verdadeiro tema da série, a conexão humana.
O grande barato é elencar vários personagens desajustados e sem pulsão nessa vida. Pessoas que viram as grandes decisões passando na frente de seus olhos e agora apenas aguardam o planeta verde acabar com tudo.
Quando elas começam a interagir, os absurdos dessa realidade descontinuada soam mais tragáveis, até mais cotidianos e as conversas parecem ganhar alguma dimensão mais próxima. A experiência, uma vez compartilhada, engrandece-se de uma maneira que Carol jamais imaginou. O fim do mundo, no caso, são de verdade os amigos que fazemos pelo caminho.
O que é o fim?
Não gostei da série. Ela toma os caminhos mais cínicos para construir seu humor espertinho para desenvolver uma experiência de narrativa completamente alienada. Me parece extremamente certinha. E é claro que ela foi escrita durante a pandemia e publicada pela Netflix na mesma onda de Midnight Gospel (essa eu gosto), mas tem algum valor no meio disso
Tem dois episódios que são bastante especiais.
Um acompanha Carol, completamente bêbada, tentando encontrar os pais de um menino fantasiado de vampiro que pede doces ou travessuras em seu condomínio. Desde o início a criança já está sozinha e vamos aos poucos ganhando certeza da verdadeira natureza daquele garoto. Ele foge de Carol e de todas as figuras adultas, apenas para encontrarem-no em sua casa sozinho, com pilhas e pilhas de doces.
Outro episódio se passa inteiro nos achados e perdidos do escritório. Os personagens estão buscando um broche verde e passam por vários objetos esquecidos por ali. Aí conhecemos um pouco a história de cada objeto, como cada um deles foi parar esquecido naquela sala.
Ao invés de ficar de piadinha e tentando oferecer uma punchline por segundo, esses dois episódios abraçam o verdadeiro trivial de seus absurdos e se permite acabar com o mundo em dimensões muito mais pessoais.
O garoto abandonado pelos pais (que provavelmente saíram em viagem, já que ninguém morre violentamente nesse mundo) e todas aquelas tranqueiras são, por si só suas próprias tragédias, que não precisam ser confrontadas de forma alguma, mas a Carol tá ali. Ela olha por eles. Ela parece ser a única que olha pro mundo acabado e se pergunta “O que aconteceu aqui?”.
Não como se conhecer o mundo arruinado o salvasse de alguma forma. Não existe salvação para o planeta Terra em Carol, mas o verdadeiro motivo dela estar viva, talvez seja para compartilhar de fato essa existência solitária e melancólica com as coisas ao seu redor. O mundo acaba em silêncio, mas dentro do clichê de que estão entre amigos, tudo acaba bem.
Links legais e outras coisas que vi:
O Fim do Futuro | Podcast: As coisas que o Serrapilheira apoia são normalmente bem maneiras, mas o primeiro episódio dessa série sobre as tragédias de Porto Alegre são sinistras.
Solitário Anônimo | Curta-metragem: Um idoso acamado deseja desesperadamente morrer, mas o povo de sua cidade, o hospital e a justiça o proíbem de conseguir aquilo que deseja. Ele sofre em vida. Filme terrível sobre um dos finais de mundo mais complicados e presentes que temos, ao mesmo tempo que é bastante cruel, que veio de recomendação de uma amiga. Vai ter texto sobre mais pra frente.
Por hoje é isso, pessoas.
Não morram.
Massa! Essa série sempre me chamou atenção nos contextos em que o pessoal divulga ela, mas nunca o suficiente para me fazer ver (também não sou muito das séries, confesso...).
O "Não gostei da série" me pegou desprevinido kkkkk, mas acho que você encontrou bem um equilíbrio entre pontos altos e baixos. Em especial, esse episódio dos achados e perdidos me pareceu uma ideia genial para esse contexto. Penso em tantos desdobramentos...
Talvez eu nunca veja, mas esse contato me deixou bem satisfeito. Obrigado mais uma vez, meu amigo!